A Agenda de Desenvolvimento da OMPI avança

A Agenda de Desenvolvimento, proposta por Argentina e Brasil em 2004, visa a tornar o desenvolvimento elemento crucial em todas as negociações levadas a cabo na OMPI e na determinação de políticas de proteção à propriedade intelectual em geral[1]. De acordo com o Grupo de Amigos do Desenvolvimento (GAD)[2] , a OMPI, enquanto agência da Organização das Nações Unidas (ONU), deveria pautar-se, completamente, pelos amplos objetivos de desenvolvimento que a ONU fixou para si mesma, em particular, pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e levar em conta todas as disposições pró-desenvolvimento do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, sigla em inglês) e subseqüentes decisões do Conselho do TRIPs, como a Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Pública de 2001. Argentina e Brasil tomaram a iniciativa de lançar a Agenda de Desenvolvimento em 2004, e a proposta foi, rapidamente, apoiada por 13 países em desenvolvimento (PEDs).
Nota-se que oito países latino-americanos apoiaram a proposta da Agenda de Desenvolvimento. A proposta da Argentina e Brasil explica que, apesar dos significativos progressos científicos e tecnológicos do último século, existe uma defasagem de conhecimento e tecnologia que ainda separa os países ricos dos países pobres. Os dois países argumentam que é extremamente importante que a proteção da propriedade intelectual não seja concebida como um fim em si mesma. Além disso, os países não deveriam receber o mesmo tratamento em relação à harmonização das leis de propriedade intelectual, mas devem ser levados em conta os diferentes níveis de desenvolvimento social e econômico de cada nação.
A proposta do GAD identifica várias formas para alcançar este objetivo, como, por exemplo, a elaboração de um tratado sobre acesso a conhecimento e à tecnologia. Isto exigiria uma emenda à Convenção da OMPI, de modo a incorporar a dimensão do desenvolvimento e reformar as normas e práticas dessa organização. Isso incluiria a criação de princípios e diretrizes para o estabelecimento de atividades normativas. A proposta também incentiva maior participação da sociedade civil no processo de negociações da OMPI.
Quando a Agenda de Desenvolvimento foi proposta, os Estados Unidos da América (EUA) opuseram-se a ela, com o argumento de que basta a existência de um programa de desenvolvimento de propriedade intelectual baseado na assistência “técnica” e a criação (e o fortalecimento) dos atores encarregados de assegurar a administração e o cumprimento das normas de propriedade intelectual. Os EUA apoiaram a idéia de que níveis mais altos de proteção à propriedade intelectual beneficiam todos os países, independentemente de suas diferentes realidades econômicas.
Em resposta, o GAD apontou para a necessidade de apurar o impacto das normas de propriedade intelectual sobre os países em desenvolvimento (PEDs). Para que os PEDs sejam, efetivamente, beneficiados por leis mais harmônicas de propriedade intelectual, a transferência e a disseminação de tecnologias deveria ser obrigatória. O GAD convenceu os Membros da OMPI a realizar uma série de reuniões intergovernamentais entre as sessões, para analisar suas propostas, e solicitaram amplas mudanças no mandato e no funcionamento da Organização. Para este propósito, foi criado o Comitê Provisório.
As 111 propostas[3] apresentadas pelos Estados Membros, nos últimos três anos, foram reagrupadas em um documento de trabalho[4] elaborado pelo Embaixador das Filipinas, Enrique Manalo, em tentativa de delimitar as propostas, evitar repetições e separar os documentos que requerem ações concretas das declarações de princípios gerais e objetivos. Ademais, na tentativa de facilitar o avanço das discussões, o documento de trabalho vinculou as propostas a atividades já existentes na OMPI, tais como as sessões de treinamento.
As propostas do anexo A estão centradas nas seguintes questões: assistência técnica; capacitação; estabelecimento de normas; flexibilidades; políticas públicas e domínio público; transferência de tecnologia; acesso a conhecimento; e assuntos institucionais.
A proposta mais controversa do anexo A foi o núcleo B, em particular, a questão da preservação do domínio público. Nesse sentido, a Colômbia expressou suas reservas sobre o assunto, pois, em sua opinião, a proteção à propriedade intelectual deve criar incentivos apenas para invenções e criações, enquanto o domínio público[5] não precisa de proteção no sentido tradicional da propriedade intelectual.
Outros países, como Chile, Uruguai e Brasil, opuseram-se, rapidamente, à proposta da Colômbia e reafirmaram a importância do domínio público como fonte de informação geradora de inovação e criatividade, o que, por sua vez, leva a novos direitos de propriedade intelectual. Muitas Organizações Não Governamentais (ONGs) e algumas associações de bibliotecas que estavam presentes na reunião, rapidamente, ressaltaram a importância do domínio público para a manutenção do equilíbrio entre os direitos de propriedade intelectual e os direitos da sociedade de ter acesso à informação e à cultura e de desfrutar do progresso científico. O Brasil também argumentou que é muito cedo para que os países apresentem reservas, pois os textos ainda não são definitivos.
Algumas delegações, como as dos EUA, da Itália e da Holanda, e algumas ONGs afirmaram que será mais difícil alcançar consenso sobre o Anexo B. Este anexo é bem mais exigente no que tange o estabelecimento de normas. Ele solicita, por exemplo, que a OMPI tome as seguintes atitudes: adote um instrumento internacional vinculante para a proteção dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional; tome medidas para a promoção de transferência de tecnologia; e compile as melhores práticas de crescimento econômico em relação ao desenvolvimento de indústrias criativas e a atração de investimento externo. Entre as melhores propostas, encontra-se a recomendação de incluir disposições sobre tratamento especial e diferenciado para PEDs e países de menor desenvolvimento ralativo (PMDRs). É interessante notar que o Anexo B tem como foco central o acesso ao conhecimento, o que contraria o enfoque tradicional da OMPI sobre direitos de propriedade intelectual.
Em nome do GAD, a Argentina argumentou que algumas das atividades da OMPI elencadas no documento de trabalho são de natureza ad hoc e, por isso, deveriam ser institucionalizadas. O GAD acredita que o exercício de negociação da Agenda de Desenvolvimento ajudará a OMPI a tornar-se uma organização efetivamente dirigida por seus Membros. O Grupo assinalou que ainda existem muitas propostas relativas a declarações de princípios gerais e objetivos. Na prática, é difícil dar seguimento a essas propostas, quando comparadas àquelas mais concretas. Alguns exemplos são: o estabelecimento de um fundo de doações para facilitar a assistência técnica a PMDRs; a possibilidade de os escritórios nacionais de PEDs acessarem bases de dados especializadas para efetuar suas buscas de patentes; e a criação de página na Internet que contenha informações sobre a assistência técnica prestada pela OMPI. Um exemplo de declaração de princípios gerais e objetivos é a proposta de que os diferentes níveis de desenvolvimento dos vários países sejam efetivamente levados em conta no desenho, na promoção e na avaliação dessa assistência técnica.
Em nome do grupo asiático, o Paquistão insistiu na importância da aquisição, por parte dos países, do espaço político necessário, para enfrentar as necessidades do desenvolvimento. Particularmente, esse país identificou três motivos de preocupação:
1) O impacto da propriedade intelectual sobre os preços de produtos essenciais, softwares educativos, medicamentos essenciais e livros educativos;
2) A dificuldade de acesso à tecnologia, devido à existência de patentes, ao aumento do período de proteção, à pouca divulgação de informação e aos cartéis; e
3) A contínua apropriação indevida do conhecimento tradicional e de recursos genéticos.
A África do Sul também afirmou que uma Agenda de Desenvolvimento sólida poderia equilibrar melhor o sistema de propriedade intelectual. Ela sustenta que é preciso aprender com as experiências passadas; e lembra que os países hoje industrializados chegaram aonde estão, porque escolheram trilhar caminhos de desenvolvimento econômico compatíveis com suas realidades. O Japão destacou que o uso do sistema de propriedade intelectual contribuiu para seu desenvolvimento econômico; e argumentou que a proteção da propriedade intelectual é um ciclo dinâmico que envolve criação, proteção e exploração. A Coréia do Sul apoiou o Japão e reconheceu a importância da propriedade intelectual para os PEDs e PMDRs. Ambos os países ofereceram-se para compartilhar seus conhecimentos neste processo.
O Canadá acredita que os Membros estavam satisfeitos, por terem atingido um ent endimento na Agenda de Desenvolvimento. Durante a terceira sessão do PCDA, os EUA expressaram seu compromisso com a Agenda de Desenvolvimento e assinalaram que já houve melhoras. Os EUA fizeram referência ainda ao relatório da Assembléia Geral de 2005, o qual indicava que as negociações da OMPI ocorrem de acordo com a demanda e que o apoio ao desenvolvimento cresceu, como demonstrado pelo consenso sobre melhorias no orçamento e mais transparência em todas as reuniões.
A delegação dos EUA parecia estar de acordo com a maior parte do texto preparado pelo presidente do Comitê, mas argumentou que é pouco provável que os países cheguem a um acordo sobre todas as 111 propostas. Os EUA não concordaram com o texto de uma proposta que “assegurava” a transferência e a disseminação de tecnologia a todos os PEDs, por crer que os próprios PEDs devem decidir se precisam ou não de transferência de tecnologia. Em sua opinião, a OMPI não deve encarregar-se de tal definição.
Os EUA argumentam, ainda, que os países desenvolvidos não devem ser os únicos a adotar políticas e medidas, para apoiar a transferência de tecnologia, mas que, em alguns casos, os PEDs também podem compartilhar sua capacidade técnica. Nesse sentido, citou como exemplo o bem sucedido “projeto espacial” brasileiro. Ademais, eles crêem que os próprios países devem decidir se querem ou não utilizar as flexibilidades existentes, pois podem existir empresas que não desejam usá-las. Os EUA não concordam com a natureza obrigatória das propostas.
Durante a terceira sessão do PCDA, os grupos africano e asiático expressaram seu apoio às iniciativas do GAD. Kamil Idris, Diretor Geral da OMPI, afirmou que estava muito satisfeito com os resultados das discussões e esperava que o espírito de compromisso e mútuo entendimento persistisse em futuras negociações. Ele destacou que a proteção da propriedade intelectual não é um fim em si mesma, mas deve servir a um interesse social e econômico mais amplo. Para ele, os direitos dos inventores e criadores devem ser equilibrados por considerações mais amplas para o bem da sociedade.
Em resumo, ao contrário das sessões anteriores, a terceira sessão do PCDA gerou mais resultados. No próximo mês de junho, as discussões fundamentais sobre o documento de trabalho continuarão durante a quarta sessão do PCDA, com o objetivo de apresentar à Assembléia Geral recomendações sobre como proceder com a Agenda de Desenvolvimento.
* Fleur Claessens faz parte do Programa sobre Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Sustentável do International Centre on Trade and Sustainable Development (ICTSD).
Tradução do artigo publicado originalmente em Puentes entre el Comercio y el Desarrollo Sostenible, v. VIII, n. 1, Marzo. 2007, p.13.
[1] WIPO. Proposal by Argentina and Brazil for the Establishment of a Development Agenda for WIPO. Trigésima Primeira (XV Sessão Extraordinária). WO/GA/31/11. Genebra: 27 ago. 2004.
[2] O chamado Grupo de Amigos do Desenvolvimento é composto pelos seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, Equador, Egito, República Islâmica do Irã, Quênia, Peru, Serra Leoa, África do Sul, Tanzânia, Uruguai, Venezuela e República Dominicana. O grupo de 15 membros — todos eles PEDs — reivindica amplas mudanças para integrar os objetivos de desenvolvimento da ONU em todos os aspectos do mandato e do funcionamento da OMPI.
[3] A reunião intergovernamental, realizada no período entre sessões, foi criada durante a Assembléia Geral de 2005, para examinar a proposta da Agenda de Desenvolvimento. Durante suas três sessões em 2004 e 2005, EUA, Reino Unido, Bahrein e outros países árabes e do grupo africano — apresentaram propostas de desenvolvimento tais como assistência técnica e como eliminar a brecha digital. O PCDA foi criado na Assembléia Geral realizada no outono de 2005, e seu mandato foi renovado durante a Assembléia Geral de 2006.
[4] O documento de trabalho agrupa as 111 propostas subdivididas nos Anexos A e B. A reunião de fevereiro de 2007 tinha como objetivo avançar nas primeiras 40 propostas compiladas no Anexo A, e a reunião do PCDA de junho de 2007 planeja analisar o Anexo B, que contém as demais propostas. Como resultado das discussões, será apresentado à Assembléia Geral um conjunto de recomendações baseadas no texto de propostas administráveis. Enrique Manolo (Filipinas) circulou o seguinte documento de trabalho segundo instrução da Assembléia Geral da OMPI em outubro de 2006: Provisional Committee on Proposals Related to a WIPO Development
Agenda. Terceira Sessão. WIPO PCDA/3/2. Genebra: 20 fev. 2007.
[5] Os trabalhos em domínio público são aqueles que nunca foram patenteados ou não estão mais dentro do período de proteção conferido pelas leis de propriedade intelectual aplicáveis.